Modafinila: 50 estudos para entendê-la (parte 1)

A ideia dessa coletânea de posts é bem simples: revisar cinquenta estudos científicos (sim, 50) sobre a modafinila - todos eles ensaios clínicos em humanos - para traçar uma imagem geral realista sobre o medicamento. Não é uma revisão acadêmica, mas dá pra ver o que se repete, o que falha, onde a evidência é sólida e onde é fumaça. Vem comigo:

#1. O preço da precisão - Turner (2003)

Resumo executivo

A modafinila (100 mg e 200 mg) melhorou memória de trabalho, planejamento espacial e controle inibitório, mas tornou as respostas mais lentas. Te faz acertar mais - mas custa mais tempo.

Turner, D. C., Robbins, T. W., Clark, L., Aron, A. R., Dowson, J., & Sahakian, B. J. (2003). Cognitive enhancing effects of modafinil in healthy volunteers. Psychopharmacology, 165(3), 260–269. https://doi.org/10.1007/s00213-002-1250-8

O Trade-off Velocidade × Precisão

Turner testou a cognição de 60 homens saudáveis com o CANTAB — bateria padrão-ouro para medir funções do córtex pré-frontal. Duas horas após a dose única de modafinila, os participantes mostraram desempenho superior em testes de planejamento, reconhecimento visual e inibição de resposta.

Mas havia um preço: eles demoraram mais para responder.

A droga trocou velocidade por precisão.

Esse padrão mais calculado, mas também mais lento, indica um ajuste de controle executivo, não uma melhora global de inteligência.

Esse novo filtro cognitivo pode ser vantajoso em tarefas longas e estratégicas — análise de dados, planejamento, pesquisa. Mas em contextos com prazos apertados? Potencialmente desastroso.

Síntese

Turner mostrou que a modafinila não cria super-cérebro — cria cérebro metódico.

#2. Enxadristas mais analíticos - mas mais fracassados - Franke et al. (2017)

Resumo Executivo

Jogadores de xadrez sob modafinila, metilfenidato e cafeína pensaram (de)mais sobre cada jogada — e perderam mais partidas. Em outras palavras: o cérebro ficou mais analítico, mas também menos eficiente sob pressão.

Fonte: Franke, A. G., Gränsmark, P., Agricola, A., Schühle, K., Rommel, T., Sebastian, A., & Lieb, K. (2017). Methylphenidate, modafinil, and caffeine for cognitive enhancement in chess: A double-blind, randomized controlled trial. European Neuropsychopharmacology, 27(3), 248–260.

O xadrez é o teste perfeito para psicoestimulantes. Cada movimento exige raciocínio estratégico complexo, foco, memória de trabalho e controle inibitório — exatamente as funções do córtex pré-frontal que essas drogas supostamente aprimoram.

Se elas realmente aumentam o desempenho cognitivo, deveriam tornar os enxadristas melhores.

Mas não foi isso que aconteceu.

Em vez de jogarem melhor, os participantes passaram mais tempo refletindo — e perderam por cronômetro. Eles se aprofundavam mais na análise de cada movimento, mas isso sabotava a capacidade de agir no tempo certo.

Novamente, a modafinila não aumentou a inteligência. Ela mudou o estilo cognitivo: de ágil (e talvez menos preciso) para deliberativo e metódico.

É uma faca de dois gumes. Pode ser vantajoso em contextos de análise profunda — pesquisa, planejamento estratégico. Mas desastroso em cenários com limite de tempo: provas, cirurgias, plantões.

Síntese

A modafinila, o metilfenidato e a cafeína não aumentaram o QI do enxadrista. Apenas fizeram eles pensarem mais. E, no xadrez acelerado, pensar demais é perder.

#3: Cérebros no limite - Xu et al. (2022)

Resumo executivo

Em cérebros privados de sono, a modafinila faz o oposto do que faz em cérebros descansados: acelera. Após 36 horas acordados, voluntários tratados com modafinila tiveram resgate quase completo da memória de trabalho e do tempo de resposta, além de manter padrões elétricos cerebrais normais — enquanto a cafeína falhou em ambos parâmetros.

Fonte: Xu, L. et al. (2022). Modafinil ameliorates the decline in pronunciation-related working memory caused by 36-h acute total sleep deprivation: An ERP study. Neurobiology of Learning and Memory, 195, 107625. https://doi.org/10.1016/j.nlm.2022.107625

Modafinila, eletro, e privação de Sono

O estudo chinês reuniu 16 homens saudáveis para três sessões de 36 h sem dormir, em um desenho cruzado duplo-cego com modafinila (400 mg), cafeína e placebo. O objetivo era avaliar a performance sob privação de sono.

Durante o período de privação, os participantes realizaram tarefas de memória de trabalho ligada à pronúncia enquanto o cérebro era monitorado via eletroencefalograma, captando potenciais relacionados a eventos (ERPs) — especialmente os componentes N2 (atenção e controle inibitório) e P3 (atualização de memória).

Implicações

Os achados inverteram o padrão visto nos dois estudos anteriores. Enquanto em cérebros descansados modafinila retardou o processamento em troca de precisão, aqui ela reacendeu a velocidade. Nas tarefas envolvendo pronúncia e memória de trabalho, a modafinila devolveu a performance quase totalmente, com respostas mais rápidas e precisas. No placebo, as 36 horas sem dormir deterioram o desempenho. No eletroencefalograma, a modafinila manteve um perfil elétrico compatível com eficiência cortical e atualização de memória.

Síntese

Modafinila 400 mg restaurou desempenho e padrões neurais após 36 h sem dormir, superando cafeína.

A droga não cria super-humanos, apenas devolve humanidade ao cérebro exausto.

#4: Modafinila te deixa mais ético? - Ngo et al. (2019)

Resumo Executivo

Sob modafinila, as pessoas se tornaram — estatisticamente — mais “morais”.
Em um estudo duplo-cego com 16 homens, a dose de 200 mg aumentou a escolha de respostas moralmente corretas em dilemas práticos (ex.: devolver troco errado) de 45% para 53% (p = 0.014, d = 0.40).

Mas a ressonância magnética não explicou o porquê: o comportamento mudou, o cérebro não mostrou onde.

Fonte: Ngo, T., Ghio, M., Kuchinke, L., Röser, P., & Bellebaum, C. (2019). Moral decision making under modafinil: A randomized placebo-controlled double-blind crossover fMRI study. Psychopharmacology, 236(12), 3473–3487.

O Julgamento em Slow Motion

O experimento alemão colocou 16 homens saudáveis em um jogo de dilemas rápidos (50 por sessão). Metade envolvia conflito ético (“ficar com o troco” vs “devolver”), e metade eram neutros (“bolo” vs “sorvete”).

Os sujeitos responderam sob modafinila (200 mg) e sob placebo, em ordem contrabalanceada. A ideia: testar se o estimulante altera a moralidade prática — não em teoria, mas na hora de decidir.

Achados-Chave

  • Comportamento:

    • Decisões “morais”: +18% sob modafinila.

    • Tempo de resposta: ligeiramente maior, sugerindo processamento mais deliberado. As pessoas pensam por mais tempo - igualzinho vimos nos dois primeiros estudos!

    • Emoções subjetivas: sem mudança em afeto positivo ou negativo.

  • fMRI:

    • Nenhuma diferença significativa nas regiões pré-frontais dorsomedial (dmPFC) ou ventromedial (vmPFC) — hubs clássicos do raciocínio moral.

    • Apenas em análises exploratórias, observou-se redução da atividade no dmPFC durante a resposta, que os autores interpretaram como “maior eficiência neural” — mas com ressalvas (pós-hoc e sem correção robusta).

Interpretação:
O achado comportamental é sólido dentro do estudo: a modafinila leva a um aumento de decisões morais. Mas o correlato neural - qual área do cérebro está sendo ativada para isso - é evasivo.

A hipótese: modafinila pode reduzir impulsividade ou aumentar controle cognitivo, levando a decisões mais consistentes com normas morais, sem alterar julgamento moral em si.

Síntese

Modafinila 200 mg leva a mais decisões éticas. Mas ainda não sabemos se é virtude... ou apenas dopamina com bons modos.

#5. Resultados Nulos Não Convincentes - Repantis (2021)

Resumo executivo

Estudo com resultados nulos, porém questionáveis.

Repantis, D., Bovy, L., Ohla, K., Kühn, S., & Dresler, M. (2021). Cognitive enhancement effects of stimulants: a randomized controlled trial testing methylphenidate, modafinil, and caffeine. Psychopharmacology, 238(2), 441-451. https://doi.org/10.1007/s00213-020-05691-w

O estudo tentou comparar modafinila, metilfenidato e cafeína ao mesmo tempo — e acabou não mostrando efeito claro de nenhum. Foram só 16 pessoas por droga, 15 testes diferentes (testes heterogêneos e não baterias de testes cognitivos farmacossensíveis e validadas) e medições feitas antes do pico da modafinila.

Nos números crus, ela foi melhor que o placebo em quase tudo, mas o excesso de correções estatísticas apagou tudo.

Conclusão: resultado nulo, mas mal desenhado. O silêncio da estatística aqui diz mais sobre o estudo do que sobre a droga.

Turner - do primeiro estudo que a gente viu aqui - conseguiu detectar esses efeitos pequenos porque sua metodologia era otimizada para isso - tarefas mais sensíveis, amostra maior, foco em uma droga e bateria de testes validada (CANTAB).

Síntese honesta - até aqui

Modafinila provavelmente melhora performance em tarefas cognitivas demandantes (funções executivas, memória de trabalho complexa, atenção sustentada) em adultos jovens saudáveis nas doses de 200-400mg, com effect sizes modestos quando detectados. Pode vir com o custo, porém, de lentificação.

A evidência é sugestiva mas não conclusiva. Estudos individuais são pequenos, nem sempre replicam entre si, e há limitações metodológicas importantes. O efeito não é dramático - você não vai virar super-humano. Na melhor das hipóteses, é uma vantagem marginal em tarefas específicas e demandantes.

Para uso como "cognitive enhancer" em contexto acadêmico/profissional, a questão não é apenas "funciona?" mas "funciona o suficiente para justificar custos, riscos e questões éticas?".

No próximo post, revisaremos mais literatura sobre a modafinila!

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