Sistemas Nervosos Que Esqueceram Como Desliga: duas histórias de dor em uma tarde no consultório

Dor de cabeça em jovens - e suas raízes

Há dois tipos principais de dor de cabeça primária, e eles falam línguas radicalmente diferentes. A enxaqueca é explosão, tempestade elétrica, sistema nervoso em curto-circuito. A cefaleia tensional é acúmulo, músculo virando pedra, tensão que nunca encontra alívio. Numa tarde de outubro, atendi os dois. Não por acaso - a clínica raramente é acidental. Ela estava tentando me mostrar algo maior.

Quando o corpo força um shutdown: te desliga à força




Patrick (nome fictício) entrou no consultório com aquele olhar característico - inteligente mas exausto, alerta mas frágil. Vinte e poucos anos. Trabalha durante o dia instalando equipamentos de segurança privada, à noite cursa Engenharia Elétrica. Vive num ritmo que exige atenção cirúrgica, força física e disciplina mental sustentada. E hoje era um daqueles dias críticos: prova importante se aproximando, a noite anterior passou em claro, a ansiedade corroendo qualquer possibilidade de descanso.

Pela manhã, no trabalho, os primeiros sinais. As luzes pareciam mais intensas, mais claras que o normal. Depois veio a náusea, aquele mal-estar visceral que anuncia tempestade. E então a dor - pulsátil, nas têmporas, com uma sensibilidade insuportável aos sons. Fonofobia. Enxaqueca clássica disparada por estresse e privação de sono.

É fascinante como o cérebro, esse órgão que nos permite decifrar equações diferenciais e projetar sistemas elétricos complexos, às vezes se torna o próprio algoz. A cefaleia dele não é aleatória. É uma sirene biológica, um sistema de alarme gritando "pare, isso é demais". O hipotálamo detecta a tempestade de cortisol acumulado, os vasos sanguíneos começam sua dança errática de constrição seguida de dilatação, e então - boom - o sistema trigeminovascular dispara. Dor insuportável, náusea, sensibilidade extrema à luz e som. O corpo literalmente força um shutdown quando o estresse ultrapassa um limiar invisível mas muito real.

Prescrevi rizatriptano para as crises agudas. Um agonista seletivo de receptores 5-HT1B/1D que vai constranger os vasos cerebrais dilatados (rsrs termo que meu prof de Reumato usava. Aqui, constranger = contrair). e bloquear a liberação de neuropeptídeos inflamatórios. A farmacologia é elegante assim - sabemos exatamente os mecanismos moleculares, mas ainda há algo misterioso nessa interface entre mente e matéria, entre equação química e experiência subjetiva de sofrimento.

Mas a jogada interessante foi a venlafaxina. Tecnicamente, Patrick tem três crises por mês - abaixo do cutoff clássico de quatro que justificaria profilaxia inquestionável segundo os protocolos. Mas protocolos são ferramentas, não escrituras sagradas. Olhando o quadro completo, a decisão foi óbvia: dois coelhos numa cajadada só. A venlafaxina é uma das melhores opções profiláticas para enxaqueca E trata o substrato ansioso que alimenta todo o ciclo vicioso.

É esse tipo de raciocínio que me fascina na medicina - não seguir algoritmos cegamente, mas entender a fisiopatologia e usar isso a favor do paciente. A venlafaxina a 75mg - dose onde começa a recrutar ação noradrenérgica além da serotoninérgica - vai elevar o limiar para as crises enquanto modula o sistema que dispara a ansiedade antecipatória. Ela quebra o ciclo em dois pontos simultaneamente: reduz a frequência das crises E diminui o estresse que as precipita. Elegante. Econômico. Racional.

E então, porque às vezes o corpo jovem precisa de uma ferramenta de emergência, prescrevi alprazolam em dose baixa para uso SOS. Tarja preta. Última linha de defesa. Expliquei os riscos - o GABA é poderoso, silencia neurônios hiperativos quase instantaneamente, mas é um silêncio emprestado. Dependência, tolerância, rebote. Por isso meio comprimido, apenas em emergências, e longe das provas - porque memória e benzodiazepínicos são inimigos conhecidos.

O que me intriga é o paradoxo que Patrick encarna. Vivemos numa era de produtividade maximizada, de acesso informacional sem precedentes, de ferramentas cognitivas cada vez mais sofisticadas. Mas os corpos jovens estão quebrando sob pressão de formas que gerações anteriores não experimentavam. A enxaqueca dele não é déficit - é excesso. Excesso de demanda, excesso de expectativa, excesso de estar perpetuamente "on".

Orientei sobre os gatilhos clássicos: sono regular, alimentação de três em três horas, hidratação adequada, exercício. Parece banal, mas essas são as âncoras que mantêm o sistema nervoso calibrado. São os rituais que dizem ao hipotálamo primitivo "você está seguro, pode relaxar". Porque para aquela estrutura antiga do cérebro, cortisol de ameaça de predador e cortisol de ameaça de prova de Circuitos Elétricos são molecularmente indistinguíveis.

No fundo, o caso de Patrick não é apenas sobre enxaqueca. É sobre resistência num corpo jovem que já carrega responsabilidades de adulto completo. Entre fios elétricos, câmeras de vigilância e noites viradas estudando, ele tenta não perder o fio da própria saúde. Minha função é lembrá-lo que cuidar da mente e do corpo também faz parte do projeto de engenharia - só que aqui, o projeto é ele mesmo.

Duas consultas depois, quando eu já estava processando mentalmente o caso do Andrick, entrou Ana Clara.

Pouco mais de vinte anos, professora do ensino fundamental. Polivalente - ensina todas as matérias. Ela descreveu sua dor como quem descreve um colega de trabalho indesejado mas inevitável: sempre no mesmo lugar, sempre no mesmo horário, sempre com a mesma insistência teimosa.

Dor cervical direita que "sobe" para a cabeça. Temporal direita, sempre o mesmo ponto. Tipo martelada. Fonofobia, osmofobia - sintomas que por um momento me fizeram considerar enxaqueca, como se a tarde estivesse querendo me apresentar variações sobre o mesmo tema. Mas não. Os detalhes contavam outra história. Piora no final do dia, não pela manhã. Dura poucas horas, não o dia inteiro. Nunca náuseas, nunca aura visual, nunca aquela fotofobia extrema característica. O timing estava errado, a fenomenologia estava errada para enxaqueca.

Palpei o trapézio direito. Duro como pedra. Cordas musculares tensas sob a pele, fibras contraídas cronicamente, pontos-gatilho evidentes. Todo o peso das horas estáticas diante de uma lousa e pilhas de cadernos para corrigir. A dor marchava do pescoço para a têmpora e se instalava ali como um tambor martelando insistentemente.

O diagnóstico se cristalizou ali, sob meus dedos. Cefaleia tensional. Síndrome miofascial cervical. O corpo conta histórias que a boca às vezes não consegue articular.

"Quando trabalhava no berçário, nunca senti nada," ela disse. "Depois que passei pro fundamental, que fico sentada o dia todo..."

O corpo não mente. O berçário era movimento constante - pegar criança no colo, brincar no chão, trocar fralda, circular. A vida se movia através dela. No fundamental, a cadeira a prende. O gesto se repete. O corpo endurece. E o trabalho, ela explica, tornou-se muito mais demandante, muito mais estressante.

O curioso é como cada dor tem sua gramática própria. A enxaqueca de Andrick fala a língua da crise aguda - explosões pontuais, pulsantes, que detonam quando o futuro exige demais do presente. A dor de Ana Clara fala em prosa longa e arrastada - é a crônica do cotidiano, do músculo que vira pedra, da tensão que não explode mas se acumula lentamente, dia após dia.

"Meu sono não é reparador. Acordo várias vezes. Fico preocupada com os problemas do dia seguinte."

Sono vigilante. Ansiedade basal. Irritabilidade de fundo. E então o padrão se tornou impossível de ignorar.

Andrick duas consultas antes: enxaqueca verdadeira disparada por performance acadêmica. Ana Clara agora: cefaleia tensional ocupacional. E aí está o que me fascina - a maior parte das cefaleias primárias se divide justamente entre esses dois tipos. Tensional ou enxaqueca. E a vida, em sua economia didática, me apresentou os dois em sequência na mesma tarde. Diagnósticos diferentes, fenomenologias radicalmente distintas. Mas o mesmo tema de fundo - cefaleia associada a ansiedade ou estresse intenso - tocando em variações. Dois jovens sob alta demanda. Dois sistemas nervosos respondendo ao estresse crônico ou ansiedade intensa da única forma que sabem: dor de cabeça.

Prescrevi pregabalina 75mg à noite. Escolha deliberada e multifacetada. Vai modular os canais de cálcio voltagem-dependentes, baixar a hiperexcitabilidade neuronal que alimenta tanto a dor miofascial quanto a ansiedade que contrai esses músculos involuntariamente, mesmo durante o sono. E crucial para o caso dela - vai aprofundar o sono, aumentar o sono de ondas lentas. Esse sono vigilante precisa se transformar em sono genuinamente reparador.

Claro, também prescrevi o protocolo completo não-farmacológico: correção ergonômica no trabalho, alongamentos cervicais regulares, compressa quente. Mas sei que sem tratar o substrato - esse estado de alerta perpétuo que mantém o trapézio dela contraído até quando ela dorme - estarei apenas tratando sintomas superficialmente.

E então me dei conta de algo quase poético: 75mg. Venlafaxina 75mg para Andrick. Pregabalina 75mg para Ana Clara. A mesma dose numérica, mas universos farmacológicos completamente diferentes. Duas estradas químicas distintas que, por coincidência matemática, compartilham o mesmo número.

A venlafaxina naquela dose é o sweet spot - recruta ação serotoninérgica robusta e começa a adicionar modulação noradrenérgica, perfeita para enxaqueca com componente ansioso significativo. A pregabalina a 75mg já oferece neuromodulação suficiente para dor neuropática e miofascial sem sedar excessivamente, além de melhorar arquitetura do sono.

Mesma unidade de medida. Intenções terapêuticas radicalmente distintas. Precisão farmacológica específica para cada quadro. Andrick precisava de algo que prevenisse as crises E tratasse a ansiedade antecipatória. Ana Clara precisa de algo que module a dor miofascial crônica E restaure a arquitetura do sono fragmentado. Dois coelhos, uma cajadada - mas cajadadas farmacologicamente distintas.

Corpos Jovens Como Termômetros de Uma Época

Será que estamos criando uma geração inteira de sistemas nervosos que esqueceram como desligar?

A enxaqueca e a cefaleia tensional são fenomenologicamente distintas, sim. Mecanismos fisiopatológicos diferentes, tratamentos específicos, prognósticos variados. Mas naquela tarde, vendo os dois casos em sequência, percebi que talvez sejam apenas dialetos diferentes da mesma língua subjacente: a língua da sobrecarga crônica.

Andrick com seus circuitos elétricos de dia e equações diferenciais de noite. Ana Clara com suas crianças indisciplinadas e pilhas infinitas de provas para corrigir. Ambos com vinte e poucos anos. Ambos carregando demandas que corpos humanos - evolutivamente desenhados para caçar, coletar, e ter longas horas de descanso social - não foram arquitetados para suportar de forma sustentada.

O sistema nervoso de Andrick escolheu o sistema trigeminovascular como órgão-alvo. O de Ana Clara escolheu o sistema musculoesquelético cervical. Mas o substrato é similar: estresse crônico, ansiedade basal ou intensa, sono não-reparador, demanda cognitiva e emocional incessante.

A medicina me ensinou a diagnosticar doenças com precisão nosológica. A clínica está me ensinando algo mais amplo - a diagnosticar épocas. E às vezes há uma elegância quase didática na forma como os casos se apresentam. Enxaqueca, depois tensional, em sequência. Ambos tratados com 75mg de fármacos radicalmente diferentes. Ambos sob o peso de demandas que excedem capacidades biológicas fundamentais.

Me pergunto quantos Andricks e Ana Claras mais verei ao longo da carreira. Quantos jovens manifestando somaticamente o que não conseguem processar de outras formas. A enxaqueca pode ser professora cruel mas eficaz - ensina à força que somos finitos, que precisamos de descanso, que alta performance sustentável não vem de empurrar até quebrar.

Cada paciente me ensina algo sobre farmacologia, sobre fisiopatologia, sobre semiologia clínica. Mas também me ensinam sobre a condição humana numa época específica. Sobre como corpos biológicos tentam sobreviver em ambientes para os quais não foram evolutivamente preparados.

Hoje aprendi de novo que cuidar não é apenas suprimir sintomas com elegância farmacológica. É ajudar alguém a ler os sinais que o próprio organismo está enviando. É ser tradutor entre corpo e mente, entre biologia e biografia, entre mecanismo molecular e experiência vivida de sofrimento.

Amanhã terá mais consultas. Mais histórias. Mais lições.

Por ora, essas ficam registradas.

Notas técnicas

Diferenciação diagnóstica crucial: Fonofobia e osmofobia podem aparecer em cefaleia tensional severa, mas a ausência de náusea significativa, fotofobia intensa, aura, e principalmente o timing (fim do dia, curta duração) junto com clara origem miofascial (tensão muscular palpável, melhora com calor/massagem) fecha o diagnóstico como tensional/cervicogênica e não enxaqueca.

Sobre a venlafaxina para enxaqueca: Embora três crises mensais estejam tecnicamente abaixo do threshold de quatro para profilaxia obrigatória, a escolha foi estratégica. Trata simultaneamente o componente ansioso que perpetua o ciclo E reduz frequência de crises. Tratamento racional: uma molécula, dupla ação, melhor adesão. Dose de 75mg é ideal para recrutar ação dual (serotoninérgica + noradrenérgica inicial).

Sobre a pregabalina para cefaleia tensional: Off-label mas farmacologicamente racional para cefaleia tensional crônica com componente ansioso-muscular significativo. Liga-se à subunidade α2δ dos canais de cálcio voltagem-dependentes, reduzindo liberação de neurotransmissores excitatórios. Efeito tríplice: analgésico + ansiolítico + melhora arquitetura do sono (aumento de sono de ondas lentas). A melhora do sono é crucial - sono fragmentado perpetua tensão muscular crônica.

Follow-up: Ambos com retorno em 3-4 semanas para avaliar resposta terapêutica e titular doses se necessário.

Nota Importante

Este texto relata casos clínicos reais com nomes e detalhes modificados para preservar a privacidade dos pacientes. O conteúdo tem finalidade exclusivamente educacional e informativa.

Este material não substitui consulta médica. Cefaleia pode ter causas variadas, algumas potencialmente graves. Se você apresenta dor de cabeça intensa, súbita, persistente ou acompanhada de sintomas como febre, rigidez de nuca, alterações visuais persistentes, dificuldade de fala ou fraqueza, procure atendimento médico imediatamente.

Não inicie, modifique ou interrompa tratamentos sem orientação médica. Os medicamentos mencionados (venlafaxina, pregabalina, rizatriptano, alprazolam) requerem prescrição e acompanhamento profissional. Cada caso é único e exige avaliação individualizada.

Se você sofre de cefaleias recorrentes, procure um médico clínico geral, neurologista ou especialista em dor para avaliação adequada e plano terapêutico personalizado.

Próximo
Próximo

Nootrópicos (parte 2) — uma lista de nootrópicos: os alimentos e neuronutrientes