Modafinila: quando eficiência substitui empatia

Será que, ao ganharmos produtividade com a modafinila, estamos sacrificando nossa humanidade? Imagem via Gemini

Soldados da produtividade

Acordado há 33 horas, um piloto de um caça cruza o céu noturno sobre o deserto iraquiano. Apesar da privação de sono, está perfeitamente alerta. Graças ao comprimido branco já há muito dissolvido em seu sangue: modafinila.

A médica no vigésimo paciente do dia ainda percebe nuances nos sintomas relatados. Seu cérebro modafinilizado processa padrões e conexões que, de outra forma, seriam obscurecidos pela fadiga. Ela não nota que está fazendo menos contato visual, nem que sua empatia foi sutilmente substituída por uma eficiência algorítmica.

O analista financeiro enxerga os números da planilha com uma objetividade quase desumana. Nada o distrai – nem fome, nem cansaço, nem a foto da família na mesa.

 A modafinila não apenas os mantém acordados. Ela afeta a forma que eles se sentem, pensam e se comportam. E nós só estamos começando a desvendar como.

Remédio para a dor moderna

Freud dizia que o trabalho é uma das fontes inevitáveis de sofrimento humano. A resposta da nossa sociedade? Modafinila. Sabemos que esse medicamento causa um aumento expressivo na sensação de prazer… ao executar tarefas.

Os voluntários gostaram muito mais de fazer tarefas difíceis sob modafinila.
— pesquisadores da Universidade de Oxford e Cambridge [1]. da citação

Além de converter o “meu Deus, que coisa maçante” em “uau, que trabalho prazeroso!”, a modafinila também torna você mais eficiente. Por essa fama, herdou a alcunha de smart drug – alega-se que ela aumenta a memória, foco e raciocínio. Sua característica mais impressionante, contudo, é o poder de manter você acordado “por três dias e três noites”, segundo seu criador. “Dormir” some da pirâmide de Maslow. É a droga quase-perfeita do século XXI.

Mas a história desse comprimido começou há algumas décadas. Começou com um cientista francês, um gato coberto de eletrodos, e um gráfico de ondas cerebrais rolando ininterruptamente em papel contínuo.

Lyon, 3h17 da madrugada

Eram os anos 1986. O silêncio da madrugada de Lyon era rompido apenas pelo suave arranhar das canetas de tinta sobre o papel. Scratsch, scratsch, scratsch. No alto do prédio antigo da Universidade Rockefeller, as máquinas de eletroencefalograma não dormiam. E Michel Jouvet, um dos maiores experts mundiais em sono – e padrinho da modafinila –tampouco.

O estranho parto da modafinila. Scratsch, scratsch, scratsch… Imagem via Gemini.

Pesquisadores próximos a Jouvet narram assim a atmosfera mágica de seu laboratório [2]:

“Gatos estavam conectados, por eletrodos, a enormes polígrafos que funcionavam dia e noite vomitando metros de papel. Oito canetas escreviam a estranha música da vigília e do sono”.

Essa música era o registro da atividade cerebral dos gatos experimentais, capturados por eletroencefalograma.

Enquanto ouvia essa tradução elétrica do sono e da vigília, Jouvet olhou para o pequeno comprimido branco sobre a mesa. Ele já havia tomado a modafinila doze horas antes. E continuava perfeitamente desperto.

Jouvet foi um biohacker antes mesmo que o termo existisse. “Eu às vezes a tomo para trabalhar, para aumentar a produtividade”, confessou Jouvet ao British Medical Journal, ainda nos anos 80. “Ela proporciona uma vigília excelente, sem nenhum efeito colateral, nenhuma ansiedade, nenhuma alteração comportamental. Diferente das anfetaminas, ela não gera tolerância ao longo do tempo, nem exige aumento de dose para manter o efeito” (foto ao lado) [3].

Moda da modernidade

Talvez Jouvet não imaginasse, ao fazer essa declaração, que se tornaria o precursor de uma moda: o uso de modafinila para melhorar o raciocínio e a produtividade. Como vamos acompanhar, a modafinila floresceu na guerra – uma resposta estratégica à exaustão militar – antes de ser convertida em solução civil para abater inimigos modernos, como TCCs, relatórios e prazos.

Ainda vamos retornar a essa transição – por ora, é suficiente saber que a modafinila encontrou terreno fértil em nossa sociedade. A prevalência real é relativamente obscura – alguns estudos estimam que até 7% dos estudantes universitários do Reino Unido usam remédios para estudar [4]. Outros, utilizando estimativas indiretas, dão conta de cifras que vão até 16% [5].

Nesse universo de “smart drugs”, a modafinila se impôs como protagonista. Ela desbanca substâncias como metilfenidato (Ritalina) e dexanfetamina, com taxas de uso vitalício quase três vezes superiores [4]. Esse protagonismo provavelmente se deve à sua fama de 'potencializador cognitivo' com menor risco de efeitos adversos graves.

Metrônomo de uma nova era

Modafinila inaugura uma nova classe de medicamentos: “eugeróicos” (o bom despertar). Imagem via Gemini.

A molécula que mantinha Jouvet alerta e produtivo nas madrugadas de Lyon tem uma origem insólita. A modafinila não foi desenhada em laboratório – ela nasceu fígado de um rato. Os franceses testavam em roedores uma substância chamada de adrafinila, que esperavam ser um analgésico – e o metabolismo dos roedores a transformavam em modafinila. A modafinila não tirava a dor, mas mantinha os animais acordados por mais tempo.

Jouvet foi chamado para investigar esse novo composto em seus gatos instrumentados. Os animais ficaram despertos a noite inteira – “sem sequer um minuto de sono”, como narram colegas próximos a Jouvet [2].

Jouvet ficou surpreso. A vigília era limpa: sem agitação, sem euforia.

A modafinila se revelava um estimulante peculiar — acordava, mas não excitava. Jouvet ousou, então, criar uma classificação – separando a modafinila de estimulantes “sujos” como as anfetaminas. Ele a batizou como uma substância “eugeróica” – do grego: “estar bem desperto”.

Jouvet havia dedicado sua vida a entender os sonhos – mas lançou um medicamento para permitir às pessoas abdicar deles.

Lá fora, Lyon ainda dormia. O mundo dormia. Mas ali, entre gatos eletrodados, os polígrafos continuavam seu registro incessante. Scratsch, scratsch, scratsch. O som monótono das canetas arranhando o papel era agora o metrônomo de uma nova era — uma era em que o sono, essa antiga submissão da consciência humana à natureza, começava a ser conquistado pela química. Em poucos anos, centenas de milhares de pessoas tomariam a modafinila para se manterem despertas. Médicos de plantão, programadores em prazos apertados, estudantes em véspera de exames.

Do laboratório para as trincheiras

Gabinetes fechados: descoberta científica se transforma em vantagem militar. Ministros decidem a droga que darão aos seus soldados. Foto criada via ChatGPT.

"Manter um soldado desperto por três dias e três noites, sem colapso, sem alucinação” — a promessa era tentadora demais para ser ignorada [3]. A mesma droga que tantos usam hoje na guerra contra o trabalho entediante, foi inicialmente uma arma bioquímica nos fronts. Em reuniões a portas fechadas com o ministro da Defesa da França, Jouvet apresentava a modafinila como uma alternativa limpa às anfetaminas usadas por exércitos há décadas.

Precisamos de exércitos capazes de se movimentar a qualquer momento, durante três ou quatro dias seguidos, sem queda de desempenho” – afirmou um porta-voz do ministro [3]. Isso não é algo que se conquista só com força de vontade. Exige intervenção farmacológica. A modafinila encaixava-se como a droga perfeita para missões críticas: prometia criar uma mente de prontidão operacional contínua: soldados resistentes ao tempo, à fadiga, ao sono e às emoções que enfraquecem o foco. Sem trazer os mesmos prejuízos das anfetaminas.

Essa promessa audaciosa foi colocada à prova científica da forma mais brutal possível. Pesquisadores de institutos médico-militares submeteram voluntários saudáveis a um protocolo extremo: 64 horas seguidas de vigília e esforço cognitivo contínuo — apenas atenção sustentada, testes mentais e resistência [6]. Sem descanso. Sem cochilos. Sem alívio.

Prova de fogo – e de foco

Após 40 horas de privação de sono, três destinos diferentes: grupo placebo exausto e confuso, grupo anfetamina hiperativo e disruptivo, grupo modafinila mantém foco e produtividade. Foto criada via ChatGPT.

O laboratório transformou-se em campo de batalha mental: três exércitos — modafinila, anfetamina e placebo — enfrentando o inimigo implacável chamado sono. A arena? Sessenta e quatro horas ininterruptas de tarefas cognitivas extenuantes: rastreamento visual, cálculos matemáticos, testes de memória e medições contínuas de tempo de reação. Os cientistas submeteram jovens a uma maratona cerebral que faria Jigsaw, de Jogos Mortais, se surpreender.

O primeiro batalhão a cair foi, previsivelmente, o do placebo. Já na segunda noite sem dormir, o colapso era visível. Os voluntários deste grupo já não reconheciam números simples, confundiam letras, e seus dedos, antes ágeis nos teclados dos testes, agora pareciam embriagados. Os pesquisadores observaram o que todos já sabemos intuitivamente: a mente humana natural não foi projetada para funcionar sem pausas. Alguns participantes precisaram até mesmo ser removidos das tarefas, de tão afetados que estavam.

O grupo da anfetamina contava uma história diferente. Mesmo com mais de dois dias inteiros “de pé e lutando”, mantinham desempenho surpreendentemente alto nos testes cognitivos. Porém, a que custo? Eles ficaram perturbados: “mais ativos, mais falantes e, em alguns casos, até disruptivos”, nas palavras dos pesquisadores. Dois participantes, de tão exaltados e transtornados, tiveram que ser excluídos, como alunos bagunceiros convidados a se retirar da sala de aula.

Estudo original, em 1993, que comparou modafinil, anfetamina e placebo

E então havia o terceiro grupo. Aqueles que tomaram modafinila encontraram o ponto de doçura – o equilíbrio entre eficácia e efeitos colaterais. Após 40 horas sem dormir, quando os participantes do placebo já cambaleavam entre microssonos e confusão mental, e os da anfetamina conversavam compulsivamente com qualquer um a seu alcance, os do grupo modafinila simplesmente... continuavam. Metódicos. Precisos. Presentes. Seus tempos de reação permaneciam quase idênticos aos do início do experimento. Seus cálculos mentais, consistentes. Suas respostas, calibradas.

Era como se as 64 horas, para eles, fosse só um dia estendido. A modafinila havia realizado o impossível: desacoplar o desempenho cognitivo da necessidade biológica de sono – sem provocar a balbúrdia dos efeitos colaterais caóticos dos estimulantes tradicionais.

Os estrategistas militares encontraram o que buscaram: uma substância que não apenas mantinha soldados acordados, mas os mantinha funcionais — presentes, alertas e equilibrados. Uma droga silenciosa que, diferente de suas predecessoras barulhentas, não anunciava sua presença através de comportamentos exagerados ou instabilidade emocional. Uma arma bioquímica tão discreta quanto eficaz.

A guerra contra o sono havia encontrado sua arma perfeita.

A anfetamina “perfeita” – que não é anfetamina

Enquanto ganhava os campos de batalha, a modafinila era vista como a versão aperfeiçoada das anfetaminas. Imagem via ChatGPT

A molécula de Jouvet era o divórcio farmacológico do frenesi anfetamínico: caótico, destrutivo, eufórico, sujo. Essa algazarra já tinha sido vivida no exército de Hitler – impulsionado por 200 milhões de comprimidos de Pervitin (metanfetamina). Esses soldados, neurologicamente convertidos em demônios químicos, tomavam de assalto novos territórios. Em ritmo relâmpago. Em vez de medo, êxtase e a euforia da invencibilidade sintética. Ensurdeciam-se aos sinais físicos de exaustão. Ganhavam superpoderes.

Leve euforia e grande dinamismo. Animados, muita emoção. Visão dupla e cromática depois de tomar a quarta pílula
— documentos oficiais da Wehrmach [7];

Era um estado insustentável. A anfetamina cobrava na forma de colapso cardíaco e psiquiátrico, com forte potencial de dependência.

A modafinila encarnava nos ensaios clínicos um aliado molecular bem mais discreto, alternativa atraente que oferece um despertar sóbrio.

O que nos impede de usar um composto como a modafinila — que se assemelha mais à cafeína em termos de segurança, mas é tão eficaz quanto as anfetaminas?
— pesquisadores da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) [8].

Nada impedia – e a Guerra do Golfo, em 1991, serviu como estreia. Pilotos franceses receberam modafinila antes de longas missões noturnas. O comprimido cruzou o Atlântico, com a (USAF) aderindo: "A modafinila pode representar uma alternativa ideal às anfetaminas”, disse a USAF.

Sniper farmacológico - o mecanismo

Modafinila tende a ser mais elegante em seu mecanismo de ação. Anfetamina chega arrombando a porta. Imagem via ChatGPT

Anfetaminas apertam descontroladamente em todos os botões de um painel. Elas “ligam” o córtex cerebral, envolvido com a atenção, alerta e o intelecto. Mas, no pacote, seu jorro dopaminérgico também ativa circuitos nervosos envolvidos com recompensa, movimento, excitação e ansiedade. Núcleo accumbens, córtex pré-frontal, tálamo, áreas motoras, amígdala – todos “on”. É energia demais e desordenada – o que pode gerar dependência, ansiedade, psicose e hiperexcitação [9].

Já a modafinila, se formos simplificar e forçar a barra, ativa um interruptor apenas. Ela age com a precisão de um eletricista que sabe exatamente qual fio religar – e quais circuitos cortar. Ela aciona de forma seletiva e específica as estradas neuronais responsáveis pela vigília e pelo foco nas tarefas. Ao mesmo tempo, ela bloqueia as vias envolvidas com a distração, introspecção e vigilância interna. Não “acende tudo” – só aquelas vias que importam para a execução da tarefa em mãos. A modafinila é mais como um sniper – e menos como granadas lançadas dentro do crânio [9].

Dos campos de guerra aos campus universitários

Assim como tantas tecnologias militares antes dela, não demoraria muito para que essa substância atravessasse as fronteiras do campo de batalha e invadisse silenciosamente o cotidiano civil. Desde universidades aos escritórios corporativos, passando por hospitais e startups, a modafinila traçou um novo normal: a luta contra nossas próprias limitações biológicas.

A droga que anula o eu

Modafinila em ação: droga intensifica a rede de atenção do cérebro e coloca os holofotes na tarefa. Enquanto isso, aspectos essenciais da experiência humana desaparecem na penumbra.

Estudos modernos com ressonância magnética funcional têm desnudado como a modafinila engendra seus efeitos. Nos bastidores, ela parece modular as redes neurais – essas teias intrincadas de neurônios, cada uma dedicada a uma função mental específica. Em pessoas saudáveis, uma única dose de modafinila já é suficiente para intensificar a atividade da rede de atenção dorsal (DAN). Como o nome sugere, esse circuito neuronal é responsável por orientar o foco para "estímulos externos relevantes [10].

Mas "relevantes" aqui tem uma definição farmacologicamente arbitrária: apenas aquelas informações que, no momento presente, servem à lógica de uma tarefa puramente cognitiva. Tudo o mais da experiência humana – sentimentos, insights criativos, conexões humanas – está, nesse momento, na categoria de ruído dispensável. E a DAN, essa rede neural intensificada pela modafinila, não está nem um pouco interessada nesse ruído – ela quer silêncio absoluto para executar a tarefa à sua frente.

Essa rede é a maestrina do foco absoluto. Você conhece aquela sensação de estar completamente absorto em um livro, quando o mundo ao redor simplesmente desaparece (e eu espero que esteja sendo o caso agora!)? É essa rede neural que está comandando – direcionando os holofotes da consciência para a tarefa em mãos e deixando todo o resto na penumbra. A modafinila parece ativar essa DAN com particular intensidade, facilitando aquele estado de envolvimento total com problemas complexos, a ponto de perdermos a noção do tempo.

O cabo-de-guerra: DAN versus DMN

Por outro lado, a modafinila parece silenciar as vozes da introspecção. Pesquisadores da Universidade da Califórnia administraram 200 mg de modafinila para adultos saudáveis, enquanto outros receberam placebo. A descoberta foi fascinante: a modafinila coloca uma mordaça em outra teia de neurônios – aquela envolvida com as divagações mentais [11].

Modafinila silencia a rede em modo padrão - tida como “inútil” a depender de como você vê, mas que talvez carregue algo de importante sobre nós. Imagem via ChatGPT.

Pense naqueles momentos em que você está na janela de um ônibus, absorto não em cumprir uma tarefa intelectual, mas flutuando livremente em seus próprios pensamentos. Nesses instantes, é essencialmente uma rede oposta à de atenção dorsal que assume o controle – uma rede de divagação, chamada rede em modo padrão (DMN, ou "default mode network") que está no volante – e, claro, sem destino predeterminado.

Nosso cérebro já naturalmente reduz o burburinho da DMN quando estamos diante de uma tarefa intelectual que exige atenção. Mas a modafinila a silencia mais profundamente – é uma desativação mais intensa, quase como baixar completamente o volume de uma música que antes apenas tocava suavemente ao fundo.

Ao temporariamente abafar a rede das "distrações", a modafinila nos empresta alguns superpoderes cognitivos. Comparado a quem recebeu placebo (simples farinha), os participantes modafinilizados executaram com muito mais agilidade uma tarefa cognitiva – o fenômeno foi diretamente associado à supressão da DMN revelada nos exames de ressonância. A explicação é intuitiva: sob efeito da substância, os voluntários ficavam praticamente surdos para o burburinho interno – para aquela voz da DMN que normalmente estaria, em segundo plano, divagando sobre o jantar da noite ou remoendo preocupações do dia anterior.

Em vez disso, mergulhavam numa concentração quase meditativa para o que realmente importava naquele momento: a tarefa na tela à sua frente – como se o resto do mundo e até mesmo partes de si mesmos tivessem temporariamente deixado de existir.

Os estudos com ressonância magnética revelam a seguinte fotografia do cérebro modafinilizado: uma mente mais habilidosa em alocar recursos atencionais para o presente e para as demandas externas. A modafinila corta o fluxo interno – devaneio, imaginação, autorreflexão, ruminâncias e desvios. Os circuitos do foco puro ganham músculos – fica mais fácil executar tarefas, nós conseguimos destacar com clareza cristalina o objeto de atenção.

Com a modafinila, ganhamos melhor desempenho, cometemos menos erros, executamos mais rápido, e nos tornamos excelentes trabalhadores que conseguem manter a atenção por horas a fio.

MAS À que custo?

A promessa de trabalhar 12, 14, 16… horas ininterruptas e focado e produtivo significa também a promessa de estar indisponível para qualquer outro aspecto da vida pela mesma fatia de tempo.

Mas o que perdemos ao induzir esse transe farmacológico modafinilizado? A modafinila pode estar nos roubando uma parte importante de nós mesmos: nós. Ao silenciar mais intensamente a DMN, a modafinila torna árido o que era o terreno fértil onde costuramos o passado ao futuro, onde imaginamos mundos possíveis e impossíveis. O eu narrativo sai de cena.

A valsa neural que define a experiência humana depende da coexistência de todas as redes neurais. A rede de atenção dorsal avança quando precisamos agir no mundo; enquanto a rede em modo padrão floresce quando nos voltamos para dentro. A modafinila instala um dimmer farmacológico que foca só nas tarefas, mas que perde em nuances. O ruído de fundo da DMN que compete com o nosso foco tem sua função: ele nos ajuda a nos conectarmos com quem somos, o que estamos sentindo, e com as emoções dos outros.

Ao desligar a DMN com a modafinila, ganhamos foco e produtividade. Perdemos, talvez, a chance de sermos interrompidos por uma ideia brilhante e inesperada, que nasce da divagação que tanto tentamos evitar. Diminuímos a chance de recebermos um insight poderoso, um vislumbre poético, ou mesmo de ouvirmos uma piadinha interna que nos distrai, mas nos alegra. Tornamo-nos quase máquinas – muito eficientes, mas menos visionários.

Ao baixar um AI-5 na DMN, calando-a por decreto químico, a modafinila nos empresta eficiência, mas nos rouba significado. O custo de ser mais produtivo é ser menos humano.

É um tanto óbvio: ao nos robotizarmos, sacrificamos... humanidade. É só que agora conseguimos ver isso por ressonância.

Trabalhadores invencíveis

O campo de batalha mudou. As trincheiras agora são cubículos corporativos, prontos-socorros lotados, laboratórios frenéticos, redações com prazos impossíveis, bolsas de valores em ebulição. A mesma substância que mantinha soldados em alerta letal agora sustenta médicos exaustos, estudantes desesperados, programadores em viradas épicas. A lógica permanece idêntica: resistir ao sono, manter-se funcional quando o corpo implora por descanso. Só que agora transposta ao civil.

A modafinila foi aprovada para narcolepsia, mas encontrou um mercado muito maior: a fadiga social crônica. Ela não é apenas usada por pessoas doentes — apenas sobrecarregadas e sobre-exigidas por um mundo que não respeita nossos limites biológicos.

E Jouvet, curiosamente, foi o precursor disso. "Conheci jovens meninas que não se saíam bem na escola, que passaram no bacharelado e foram para a universidade graças a este tratamento. Tenho a impressão de ter prestado a elas um excelente serviço", disse Jouvet ao British Medical Journal ainda nos anos 1980 – já difundindo o seu uso como smart drug antes do termo virar febre [3].

O que Jouvet não disse, mas talvez tenha percebido, é que estava ajudando a criar uma categoria de humanidade medicada – pessoas cujo sucesso acadêmico e profissional seria mediado quimicamente, cujo destino seria alterado por um comprimido branco. A modafinila é uma das substâncias mais silenciosamente influentes do século XXI.

A droga que te manipula a amar o trabalho

Modafinila mexe na percepção de prazer em executar tarefas lógicas. As que normalmente seriam extremamente maçantes se tornam quase entretenimento. Imagem via Gemini.

Usar modafinila é induzir um estado operacional mais eficiente – especialmente nas tarefas mais intelectualmente exigentes. É o que revelou um estudo onde pesquisadores deram uma única dose de 200 mg de modafinila a voluntários saudáveis. Fascinante: os modafinilizados se tornaram superiores àqueles que receberam placebo em testes difíceis – provas que envolviam planejamento, resolução de problemas complexos, e demandavam memória de trabalho espacial e memória visual [1].

Quanto mais alto o sarrafo, mais aqueles que usaram a modafinila se destacavam. Eles brilhavam mais do que quem usou placebo nos desafios lógicos mais árduos. Mas, entre quem usou a modafinila, também houve uma tendência de queda em testes que exigiam flexibilidade cognitiva e elaboração criativa. Ou seja: no campo prático, é uma droga excelente para descascar problemas lógicos – mas potencialmente empobrecedora da capacidade de abstrair, imaginar e se virar nos 30.

Ocorre que a modafinila não apenas te torna um Einstein ou Steve Jobs da produtividade. Ela te faz acreditar que você amou o processo. Nesse mesmo estudo, pessoas do grupo placebo perceberam as tarefas cognitivas pelo que de fato eram: um porre. Eles deram uma nota 2.3 no nível de "prazer" que tinham ao executá-las. Já quem usou a modafinila simplesmente amou e se deleitou em resolver problemas maçantes e difíceis: deram, em média, um 9.0 pro seu prazer nas tarefas.

Mesmo sem euforia ou excitação, o cérebro era enganado a curtir e valorizar mais a tarefa em si. A dopamina correndo nas sinapses certas reescrevia a percepção subjetiva das tarefas. Se esses dois voluntários conversassem, aquele que recebeu placebo diria: "nossa, eu odiei cada segundo desse estudo!". O que recebeu modafinila responderia: "como assim? Eu nem vi o tempo passar! Fiquei chateado quando me mandaram interromper…".

Lavagem cerebral

Por que precisamos de um comprimido para gostar de trabalhar? Imagem por ChatGPT.

A modafinila está nos tornando mais hábeis em executar tarefas tediosas – e, ainda, fazendo-nos genuinamente gostar do que, sem a droga, acharíamos maçante. Há algo profundamente distópico nessa capacidade: uma substância que não apenas altera o que fazemos, mas como nos sentimos sobre o que fazemos. É quase uma forma de engenharia emocional - não estamos apenas otimizando o desempenho, mas reprogramando o prazer.

O cérebro, sob modafinila, passa a gostar de resolver labirintos lógicos, manter o foco em detalhes minuciosos – como se isso fosse prazeroso por si só. Nesta lavagem cerebral bioquímica, a modafinila sequestra o "eu" para fazê-lo operar como uma máquina e encontrar um prazer nisso que, sem intervenção alguma, estaria muito longe de existir (a diferença entre 2.3 para 9.0 na escala de prazer). Não é um prazer emocionalmente autêntico, mas sim fabricado por um comprimido externo.

Sob modafinila, num Admirável Mundo Novo, somos quimicamente condicionados a achar prazer em tarefas que servem a fins econômicos. Aceitamos com prazer – e pedimos mais – as exigências de um sistema que valoriza produtividade acima de tudo. E que nos pede para silenciar a nossa subjetividade.

(Cold)play: modafinila melhora a cognição fria

Mas o que exatamente estamos privilegiando nesse novo tipo de mente? Que mente é essa que estamos fabricando em massa? Os autores deste estudo destacam que a modafinila melhorou o desempenho em um subconjunto de testes muito específicos: os de "cognição fria". Sim, é esse o termo técnico. Trata-se de operações mentais puramente racionais, que, diferentes da “cognição quente” não são matizadas por carga emocional – raciocínio, resolução de problemas e atenção sustentada. A modafinila até poderia piorar a performance nos processos cognitivos quentes, os que se misturam com valores emocionais e afetivos.

A modafinila exorcisa The Scientist, do Coldpay: “I was just guessing at numbers and figures./ Pulling the puzzles apart./ Questions of science, science and progress./Do not speak as loud as my heart”, algo como:

“Eu estava apenas adivinhando números e figuras.
Desmontando quebra-cabeças.
Questões de ciência, ciência e progresso.
Não falam tão alto quanto meu coração
— Coldplay

Coisas do coração não são coisas da modafinila. “Não existe amor na modafinila”. Imagem via ChatGPT.

Ela faz o contrário: censura o coração – e dá um megafone para os números, figuras e quebra-cabeças. Science and progress.

Ao privilegiar a cognição fria, a modafinila torna o raciocínio mais genérico, impessoal — anula o "eu" nas decisões, nos pensamentos — e nos aproxima do funcionamento das máquinas. Você faz algo funcional, mas pasteurizado e sem assinatura pessoal. A entrega existe, mas não há vestígio de quem fez. O resultado é uma mente que prefere problemas a pessoas, lógica a nuance, execução a reflexão.

Isso pode ser danoso em decisões que exigem textura afetiva e contexto emocional. Ao deslocar o raciocínio e a tomada de decisões para um campo "lógico" demais, a modafinila pode ser desastrosa nas relações pessoais – em que a resposta certa pode não ser a mais imediatamente racional.

Vamos pra prática: a modafinila na vida real?

Como esse cérebro modafinilizado pode funcionar no mundo real? Considere o seguinte cenário, um tanto especulativo, mas plausível à luz dos dados.

Enquanto a Rede de Atenção Dorsal de Rafael mantém foco rígido na tarefa, os sinais sociais de Eduardo — dois cafés e um convite — são ignorados como ruído irrelevantes.

Rafael, um homem jovem, saudável, toma modafinila pela manhã. Ele não está privado de sono, mas quer aumentar seu desempenho. O objetivo é simples: terminar um relatório complexo, denso, técnico. Uma tarefa que normalmente pareceria enfadonha, talvez até desinteressante. Exige atenção e resistência ao tédio. Mas hoje, ela parece... curiosamente recompensadora. Há uma fluidez estranha na execução. Um prazer inesperado.

A droga baixou o volume da sua Rede de Modo Padrão (DMN), aquela que nos permite vagar mentalmente, revisitar memórias, fantasiar cenários, captar nuances. Em seu lugar, domina a Rede de Atenção Dorsal (DAN), mantendo o foco rígido, como se só existisse a planilha à sua frente.

Nesse estado, a tarefa — que, em condições naturais, ganharia uma nota de prazer em torno de 2,3 — agora parece envolvente. Fascinante, até. Graças à modulação dopaminérgica, torna-se intrinsecamente motivadora. Ele não precisa mais se forçar: o cérebro quer fazer exatamente aquilo.

É nesse contexto que ocorre a cena central: um colega, Eduardo, passa por sua mesa. Sorri, com um certo charme. Um convite informal: "Ei, vai um café?".

O convite tem nuances: tom de voz aberto, contato visual sutil, linguagem corporal ligeiramente inclinada. Sinais de interesse. Talvez de flerte. Mas nada explícito.

A resposta de Rafael vem seca, sem sequer olhar para ele: "Agora não dá, tô no meio de uma coisa". A cognição fria tomou o volante – as decisões são reduzidas a processos puramente lógicos, afastados de quaisquer vernizes emocionais ou sociais. Não é hora do coração falar, e sim de numbers and figures.

Aquele gesto galanteador e quente de Eduardo é percebido por Rafael como distração que ameaça à tarefa. Ruído. O cérebro modafinilizado ignora sutilezas e pistas sociais. O convite não ganha status de estímulo relevante. Não há abertura para hipóteses afetivas, não há leitura social. A DAN não deixa – porque, no momento, os holofotes estão na planilha. E nada mais importa.

Os sinais de Eduardo foram rebaixados na hierarquia de saliência, classificados como "interferência". O foco na tarefa não foi simplesmente uma escolha: foi uma priorização farmacologicamente mediada. O colega hesita por um segundo, depois volta ao seu lugar com dois cafés agora mornos.

(*No lado positivo, Rafael não misturou o modafinil com café!). Modafinila tende a privilegiar o foco em tarefas lógicas e cognição fria - subjetividades ficam apagadas. Imagem por ChatGPT.

Conexões humanas sutis, agora irrecuperáveis. Com a DMN progressivamente mais ativa, Rafael acessa a consciência da sua solidão.

Mais tarde, talvez horas depois — já no caminho de volta para casa, com a modafinila em níveis séricos cada vez menores... A modulação da DMN começa a retornar. Com o rosto do nosso protagonista na janela do ônibus, agora mais próximo do seu estado "natural", a introspecção ressurge com sua trilha de pensamentos e revisitações —, surge uma pergunta espontânea:

"Por que eu nunca conheço alguém interessante?"

Se a vida fosse como no clipe do The Scientist, do Coldplay, ele poderia rebobinar o tempo, voltar àquela manhã, desativar a rede de atenção dorsal e permitir que sua DMN captasse o que realmente importava: não o relatório, mas a pessoa com dois cafés e um sorriso. Mas não há versão reversa para oportunidades perdidas enquanto a modafinila está no comando. Ela te faz jogar frio (isso foi uma tentativa de trocadilho com coldplay).

O sujeito talvez nem perceba que, naquela mesma manhã, algo havia acontecido. Mas ele não estava disponível. Não cognitivamente. Não emocionalmente. Não biologicamente.

A droga que faz focar em estímulos “relevantes”. Relevantes para quem?

Este é apenas um exemplo — mas ilustra algo maior. A modafinila pode nos afastar de aspectos que, embora considerados secundários para a execução de uma tarefa, são centrais para a construção de uma vida.

Aquilo que a droga silencia — as pausas espontâneas, os pequenos desvios da atenção, as sutilezas do outro — pode parecer irrelevante do ponto de vista da produtividade, mas não do ponto de vista da biografia. Uma oportunidade de conexão, que não foi percebida. Um gesto que passou despercebido. Uma história que poderia ter começado — mas não começou.

O ajuste neuroquímico molda o foco, mas também edita o mundo que conseguimos acessar. E o que fica de fora pode, sim, ter consequências reais, afetivas, duradouras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Effects of modafinil on non-verbal cognition, task enjoyment and creative thinking in healthy volunteers. Müller, U., Rowe, J. B., Rittman, T., Lewis, C., Robbins, T. W., & Sahakian, B. J. (2013). Neuropharmacology, 64, 490–495. https://doi.org/10.1016/j.neuropharm.2012.07.009

[2] Making modafinil: Classification and serendipity in drug development. Scholte, S. J., & Yaqub, O. (2025). Social Studies of Science. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/03063127251322113

[3] Sleepless Pill. Dorozynski, A. (1989). British Medical Journal, 298(6687), 1543-1544

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