Quando o luto encontra a química: bastidores de um caso que eu atendi

Quando química encontra biografia: como medicamentos podem ajudar a reordenar redes neurais em sofrimento.

A Porta de Entrada: Sintomas que Mentem (ou Traduzem)

Ela chegou ao consultório com 42 anos e uma queixa que parecia direta: dor de cabeça intensa e pressão alta. "Sempre que minha pressão sobe, sinto dor de cabeça", explicou, mencionando valores de 140 ou 130 mmHg - aqueles números que chamamos de "14 por 8" ou "13 por 8".

Mas logo percebi que estava diante de algo muito mais complexo do que valores aumentados no aparelho de pressão. As queixas físicas eram apenas a ponta do iceberg de uma dor emocional profunda que ela carregava há anos. Os pacientes costumam chamar de "pressão alta" aqueles sofrimentos para os quais não encontramos palavras no vocabulário.

Como observam os autores do clássico Tratado de Medicina de Família, “para muitas pessoas, a pressão alta nomeou as anomias vivenciais - aqueles sofrimentos diversos que permeiam a vida, mas que não encontram palavras adequadas. Tensões familiares, pressões do trabalho, o peso de perdas não elaboradas - tudo vira "pressão alta”.

Isso se revelaria o caso aqui.

"Pode ser que a dor de cabeça esteja causando o aumento da pressão, mais do que o contrário", expliquei para a paciente. O clássico: “quem veio primeiro? O ovo ou a galinha?” "Ansiedade também puxa a pressão para cima. Você parece ser uma pessoa muito ansiosa sobre a própria saúde...", observei, enquanto analisava seu semblante tenso e comportamento agitado desde que entrou no consultório.

"Sim, sou", ela admitiu sem hesitação.

Era um exemplo clássico do que chamamos de pseudocrise hipertensiva - embora os valores dela (130x80) fossem mais brandos que os típicos desse quadro. O conceito é o mesmo: elevação da pressão arterial secundária a fatores como dor intensa ou ansiedade severa, sem representar uma verdadeira emergência.

Quando a Ansiedade Revela Suas Raízes

Ao investigar essa ansiedade, abriu-se um universo de sofrimento que mudou completamente minha compreensão do caso. Foi como puxar uma pena e vir uma galinha. "Tenho muito medo de morrer", disse ela, "medo de ter algo grave. Não consigo dormir - tenho medo de morrer dormindo".

Sono como pesadelo: o repouso virava perigo

Esse detalhe é crucial: thanatofobia - o medo patológico da morte - que se manifesta especificamente no momento de maior vulnerabilidade: o sono. Para ela, adormecer significava perder controle, ficar inconsciente, vulnerável. Era como se o sono fosse uma "prévia da morte".

E então veio a informação que contextualizou tudo: "Meu filho de 13 anos decidiu ir morar com o pai na segunda-feira passada".

A Ferida Recente: Perdendo um Filho para um Videogame

A história por trás dessa decisão foi reveladora da complexidade das relações familiares modernas. O pai - de quem ela se divorciou e descreve como "nunca presente" - havia oferecido um PlayStation 5 para o garoto. E isso foi suficiente para ele decidir mudar de casa.

Poderia soar quase cômico se não fosse tão doloroso: perder um filho para a Sony. Mas quando ela descreveu a situação, percebi que não era sobre o videogame. Era sobre limites versus permissividade, estrutura versus "liberdade total".

"Em casa eu tenho limite para tudo, até para o celular - só na sexta-feira", explicou. A dor na voz era palpável: fazer o papel difícil de educar e depois ver o filho escolher a casa onde "pode tudo". É o paradoxo cruel da parentalidade responsável - quem coloca limites vira o "vilão", enquanto quem libera geral vira o "legal".

A Ferida Antiga: “Tem uma pessoa morrendo — seu pai”

O exato momento do colapso traumático

Mas a conversa tomou um rumo ainda mais profundo quando ela conectou seu medo atual de morrer com a perda do pai há 7 anos. "Da onde vem esse medo de morrer?", investiguei.

"Acho que é do meu pai", ela respondeu sem hesitar.

O que se seguiu foi a narrativa de um luto traumático que nunca havia sido adequadamente processado. O pai morreu de câncer de pulmão "muito rapidamente", e ela era "a melhor amiga dele". Mas o momento da morte foi devastador: ela estava na UTI, o médico disse que não poderia entrar, e quando insistiu, ele foi brutalmente direto: "Tem uma pessoa morrendo, e essa pessoa é seu pai".

Quando tentei dar palavras e forma àquele sofrimento - "avassalador", "como um trator passando por cima" - ela confirmou que as descrições batiam perfeitamente.

O Corpo como Memorial do Trauma

Sistema nervoso.

Desde aquele dia traumático, seu corpo se transformou em um memorial vivo daquela experiência: insônia crônica, pensamentos acelerados, choro fácil, ansiedade diante de qualquer sinal de que algo possa estar errado.

O mais fascinante clinicamente era como o trauma se manifestava especificamente no sono. Adormecer significa abrir mão do controle, entregar-se ao inconsciente. Para alguém que viu o pai ser "arrancado" de forma súbita e inesperada, o sono representa o momento de maior vulnerabilidade - quando a morte poderia chegar sem aviso.

Ela desenvolveu uma hipervigilância noturna: o cérebro simplesmente não permitia que ela relaxasse completamente, interpretando o sono como perigoso. Era um sistema de alarme interno que nunca desligava.

Separando as Camadas: Personalidade, Trauma e Crise Atual

Durante a consulta, verbalizei para ela um desafio diagnóstico interessante: como separar três situações sobrepostas - quem ela é de personalidade, como ficaram as coisas depois do trauma do pai, e o que a situação atual com o filho estava adicionando ao quadro.

A personalidade base: "Sempre fui bem emotiva", ela disse. Havia uma tendência natural à ansiedade, mas ela funcionava bem - chegou a ter um restaurante antes da morte do pai.

O impacto do luto: Depois da morte do pai vieram a perda de motivação, fechamento do restaurante, tentativa de suicídio (ela relatou ter "pego todos os remédios que tinha em casa e tomado tudo"), insônia crônica e aquela sensação devastadora de "não ter controle sobre nada".

A crise atual: A saída do filho reativou todos esses sintomas, mas trouxe elementos novos - o sentimento de rejeição e o medo de perder repentinamente mais uma pessoa importante.

A Química por Trás dos Sintomas

Mesmo os exames de laboratório mostravam que alguns dos pilares para o bom funcionamento cerebral estavam frágeis

Os exames laboratoriais revelaram achados que faziam sentido no contexto psiquiátrico:

Vitamina D extremamente baixa (14.4) - valores assim podem definitivamente contribuir para sintomas depressivos e dificuldades de concentração. A vitamina D não é só sobre ossos; ela atua como um hormônio no cérebro.

Ácido fólico reduzido (4.36) - correlacionado tanto com alterações de humor quanto com as hemácias aumentadas que apareceram no hemograma.

Ferritina no limite inferior - pode explicar parte da fadiga e baixa energia.

Era fascinante ver como deficiências nutricionais podem amplificar sintomas psiquiátricos. Não são a causa primária, mas certamente contribuem para piorar um quadro já complexo.

Medicina Integrada: Tratando Corpo e Mente

É importante esclarecer que não "psicologizei" o caso ignorando os sintomas físicos. A dor de cabeça e pressão arterial foram cuidadosamente avaliadas primeiro.

Ela já havia feito 3 exames de MAPA (monitorização ambulatorial da pressão arterial) previamente, todos normais. Na consulta, sua pressão estava 130x80 mmHg - mantido pelas novas diretrizes como “pré-hipertensão”, mas não uma emergência.

No contexto de insônia crônica, ansiedade severa e estresse agudo pela perda do filho, ficou claro que os valores limítrofes de pressão eram mais consequência do estado emocional deteriorado do que a causa dos sintomas.

As Escolhas Terapêuticas: Química a Serviço da Cura

Soltando amarras: da vigília ansiosa ao sono autorizado.

Avaliando o Risco

Antes de qualquer prescrição, precisei fazer uma avaliação direta de risco suicida. "Você tem pensado em se matar ultimamente?", perguntei objetivamente. Ela negou ideação atual, mas a história pregressa de tentativa era um sinal de alerta importante. O grau de higiene e cuidado pessoal, de organização, a coerência do discurso, e também o fato de que ela ainda encontrava prazer nas atividades, como a podologia, me indicavam que o episódio depressivo atual não era grave.

A Estratégia Medicamentosa

Desvenlafaxina 50mg pela manhã - Escolhi um medicamento da classe dos SNRIs (inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina). Esses medicamentos prolongam a ação de dois neurotransmissores importantes: a serotonina (ligada ao humor) e a noradrenalina (ligada à energia e motivação).

Para este caso específico, a desvenlafaxina oferecia uma dupla vantagem: cobertura tanto para depressão quanto para ansiedade, com um perfil que pode ajudar na motivação perdida. Os SNRIs também têm evidência para dor crônica, podendo contribuir indiretamente para as cefaleias tensionais através de mecanismos de analgesia central.

Equilíbrio distante

Pregabalina 75mg à noite - Esta foi uma escolha especialmente adequada para o perfil dela. A pregabalina tem indicação oficial em bula para TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) e oferece um benefício único: além do efeito ansiolítico, ela melhora a arquitetura do sono, aumentando especificamente o sono de ondas lentas - o "sono profundo" reparador.

A dose de 75mg é conservadora (pode ir até 300mg/dia quando necessário). Como medicação de receituário branco (2 vias), tem perfil de segurança adequado, evitando benzodiazepínicos em uma paciente com histórico de tentativa suicida.

A pregabalina foi fundamental para quebrar o ciclo da ruminação noturna - aqueles pensamentos catastróficos sobre morte e perda que ficam mais intensos à noite. Ela modula a hipervigilância traumática, permitindo que o cérebro finalmente "autorize" o desligamento necessário para o sono.

As Correções Nutricionais

Ácido fólico 1mg/dia e reposição de vitamina D em esquema de ataque - medidas que podem ter impacto significativo no humor e energia quando os valores estão tão deficientes.

O Que Este Caso Me Ensinou

A Importância do Olhar Integrado

Este caso cristalizou para mim a importância de não separar artificialmente o físico do emocional. A dor de cabeça e pressão limítrofe eram reais, mas eram manifestações de uma dor emocional profunda. Losartana para pressão alta e dipirona para dor de cabeça não teriam nem arranhado a superfície do problema real.

A Arte da Escuta Clínica

“Pressão alta” pode ser forma de nomear as “anomias existenciais”.

A forma como abordei o risco suicida me fez refletir sobre a delicadeza necessária nessas conversas. Fazer perguntas diretas é fundamental, mas a forma como fazemos pode determinar se o paciente vai se abrir ou se fechar. Conseguir criar um ambiente onde ela pôde contar sobre a tentativa prévia sem julgamento foi crucial para o cuidado adequado.

Medicação como Parte de um Todo

O caso reforçou que medicação é apenas uma parte da solução. Casos assim precisam de abordagem integral: farmacológica, psicoterapêutica (que deveria ter enfatizado mais), correção de deficiências nutricionais e suporte social. É medicina em sua forma mais humana e holística.

A pregabalina, neste contexto, não foi apenas uma escolha farmacológica - foi ato compassivo. Uma paciente com anos de insônia, ansiedade severa, luto não resolvido e que acabara de "perder" o filho precisava de alívio imediato para ansiedade e sono enquanto aguardava o antidepressivo fazer efeito.

Não seria humanitário deixá-la sofrendo semanas apenas esperando a desvenlafaxina agir. Era uma estratégia também mais proporcional e segura do que correr às drogas Z e aos benzodiazepínicos.

A curto prazo, espero que a correção das deficiências vitamínicas ofereça uma base bioquímica melhor para humor e energia. A desvenlafaxina deve começar a fazer efeito em 3-4 semanas, e a pregabalina pode dar alívio imediato - exatamente o que ela precisa.

A médio prazo, será crucial conseguir psicoterapia focada em luto complicado. A questão com o filho provavelmente se resolverá quando ele perceber que "liberação total" não é tão boa quanto parecia, mas ela precisa de ferramentas para lidar com essas situações sem se desestabilizar.

A longo prazo, o prognóstico é bom. O episódio atual parece ser leve a moderado, ela tem recursos importantes: trabalha com podologia (algo que ainda lhe dá prazer - não há anedonia total), tem consciência de suas dificuldades e capacidade de buscar ajuda, bem como rede de apoio (mora com atual esposo).

Uma Lição Sobre a Medicina Verdadeira

Mais do que medicar.

Este caso me lembrou que a medicina verdadeira acontece quando conseguimos ver a pessoa inteira - não apenas sintomas fragmentados ou tomados sem visão crítica. Quando conseguimos conectar biografia, química cerebral, traumas não resolvidos e circunstâncias atuais em uma compreensão integrada que orienta o cuidado.

A dor de cabeça era real. A pressão alterada também. Mas eram sinais de uma alma ferida pedindo cuidado - e foi isso que tentei oferecer: um cuidado que honra tanto a complexidade bioquímica quanto a profundidade humana do sofrimento. Prescrever losartana para pressão alta seria como nem arranhar a superfície do real problema nesse caso. Losartana poderia garantir valores pressóricos mais baixos no aparelho na marra - mas ignoraria suas raízes: noites em claros e hipervigilantes - com medo da morte, o luto traumático, a separação recente do filho por conta de um videogame, a lembrança de um trabalho num restaurante que ficou no tempo, o sofrimento tão acachapante que certa vez culminou numa tentativa de suicídio. Seria mais fácil prescrever losartana que conversar, investigar e chegar à uma síntese. Mas não seria cuidado verdadeiro.

Às vezes, cuidar exige ouvir mais atentamente - e traduzir o que “pressão alta” quer dizer. Às vezes, curar é simplesmente permitir que alguém durma em paz pela primeira vez em anos.

Dr. Matheus Pereira - CRM RJ 132108-0
Para consultas e agendamentos: (21) 972827154

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